quarta-feira, 6 de julho de 2011

Pesquisa aborda ‘mestiçagem’ na obra da missionária Clara Nunes



Contracapa do disco ‘Esperança’

 
Por Ana Gabriela e Gabriel Riceputi  

 O papel político e religioso que Clara Nunes deu a seu canto é estudado na pesquisa “O Canto do Brasil mestiço: Clara Nunes e o popular na cultura brasileira”, da professora Silvia Brügger, do curso de História da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). A pesquisa aborda a trajetória pessoal e artística da cantora e, a partir de sua obra, discute temas como a diversidade cultural brasileira e a ideia da mestiçagem. Iniciado em 2004, o projeto financiado pela Fapemig e CNPq rendeu, além de publicações, um projeto de extensão de manutenção do acervo pessoal da cantora, até então em posse de seus familiares, e um livro, ainda em andamento e sem data para publicação.
A professora Silvia Brügger explica que a questão central da pesquisa foi definir o que Clara Nunes entendia pelos conceitos ‘popular’ e ‘brasileiro’.  Isto porque a cantora, mesmo vivendo numa época de grandes movimentos musicais como Tropicália e Jovem Guarda, não se filiou a um movimento e se definia como uma ‘cantora popular brasileira’. Foi a partir desta discussão que a pesquisa problematizou aspectos culturais do Brasil.
Silvia explica que Clara compreendia o ‘popular’ como as manifestações produzidas pelo povo e o ‘brasileiro’ como um povo culturalmente “rico e hibrido”,  filho de um país mestiço e de desigualdades marcantes. Segundo a pesquisadora, Clara Nunes acreditava na necessidade de lutar contra estas desigualdades. Ela considerava cantar uma missão porque era por meio de seu canto que lutava a favor dos filhos do Brasil. “Clara se via como uma missionária. O sentido (do canto) era religioso pra ela. A música ‘Minha missão’, de Paulo Cesar Pinheiro e de João Nogueira, pra mim sintetiza esta postura dela. Além desta música, a gente tem depoimentos de pessoas que conviveram com ela que falaram que Clara se afirmava como uma missionária. O cantar pra ela tinha o sentido de missão: missão política, de denunciar os problemas sociais, e missão religiosa, de cumprir os desígnios do porque ela estava neste mundo”, explica a professora.
O sentido missionário era levado tão a sério que Clara, mesmo cansada com a rotina pesada de shows, não fazia restrições dos lugares em que ia cantar. “Ela cantava na França, no Japão e em Caetanópolis. No morro da serrinha no Rio de Janeiro; na quadra da Portela. Quer dizer, nos mais diferentes lugares e para públicos diversos”, argumenta Silvia.
A interpretação que Clara tinha do Brasil, país mestiço, culturalmente rico e diverso, ainda que com grandes conflitos sociais, deu à pesquisa a oportunidade de pensar a diversidade cultural brasileira e problematizar as discussões sobre a mestiçagem.  De acordo com Silvia, a idéia de mestiçagem muitas vezes se liga ao conceito de democracia racial, por sua vez associado à obra do sociólogo Gilberto Freyre. A professora explica que a crítica à ideia da democracia racial e à ideia de mestiçagem é que estas perspectivas encobrem diferenças e negam conflitos. “Seguindo esta linha de raciocínio, somos todos iguais, posto que todos mestiços. Portanto, não existem diferenças a serem afirmadas e nem conflitos”, diz.
Para a professora, entretanto, crer num Brasil mestiço não significa deslegitimar as diferenças. “Até que ponto a afirmação de um Brasil mestiço nega a afirmação, por exemplo, de uma identidade negra no Brasil?”, indaga a pesquisadora. “O que tento fazer a partir da obra de Clara é mostrar que é possível se pensar a mestiçagem de outra forma. Quer dizer, não é preciso se negar a mestiçagem para se afirmar a negritude. E nem toda afirmação da mestiçagem significa ausência de conflito. Acho que dizer que nós somos culturalmente e mesmo biologicamente mestiços é um dado inquestionável. Manifestações como congado cruzam matrizes culturais muito distintas. Mas, ao mesmo tempo, isso não significa que não existam conflitos, exploração e discriminação racial. Portanto, faz sentido afirmar que, mesmo dentro da mestiçagem, existem diferenças”, defende.
Outra conclusão da pesquisa foi que Clara Nunes transitava por diversas culturas e religiões. Embora a imagem da cantora seja mais freqüentemente ligada às religiões afro-brasileiras, Silvia explica que Clara tinha outras vivências. “Ela não vai passando de uma religião para outra. Ela vai retrabalhando estes universos religiosos e percebendo o que eles têm em comum. Clara freqüentava uma quantidade enorme de terreiros de umbanda e candomblé. Ia a centros cardesista; de vez em quando ia à igreja e comungava”, comenta.
Para recolher o material de análise, a pesquisadora conversou com pessoas que conviveram com a cantora, analisou documentos pessoais, material jornalístico e fez análise da discografia. A pesquisa usou a História Social da Cultura como referencial teórico, campo de abordagem em voga no Brasil, sobretudo, a partir da década de 80. O campo dá ênfase à construção humana dos aspectos culturais. 

Biografia

 
do site lastfm.com.br


Clara Nunes nasceu em 1942, na atual cidade de Caetanópolis, Minas Gerais, antigo povoado do Cedro. Órfã do pai Manuel Ferreira de Araújo aos dois anos e da mãe Amélia Gonçalves Nunes aos quatro, foi criada pelos irmãos mais velhos. Mesmo assim, herdou a bagagem musical que o pai deu a família. Manuel era violeiro e chefiava a folia de reis da região. Ainda criança, Clara já cantava no coral da igreja e em peças teatrais. Na adolescência, ela se mudou para Belo Horizonte, cidade onde finalmente foi descoberta como artista. Clara trabalhava em uma fábrica de tecidos e cantava em feiras. Foi quando se apresentava numa barraca de quermesse, que o músico Jadir Ambrósio a ouviu cantar e passou a levá-la para se apresentar na noite, nos bares e nas rádios locais.
O primeiro grande marco da carreira de Clara aconteceu quando ela participou do “A voz de ouro ABC”, em 1961, em que venceu a fase mineira do concurso e ficou em terceiro lugar na apresentação final em São Paulo. Depois disso, a cantora assinou contrato com a rádio Inconfidência e ganhou um programa de TV em Belo Horizonte. Em 1965, ela, já no Rio de Janeiro, assinou contrato com a gravadora Odeon. Seu primeiro LP, ‘A voz adorável de Clara Nunes’, saiu um ano depois e, como demais Lps do inicio de carreira, foi voltado para a música romântica, bolero e samba-canção.
Com a pouca vendagem dos discos, a gravadora decidiu redirecionar a carreira de Clara. Em 1970, o radialista Adelzon Alves passou a ser o responsável pela produção artística da cantora. Ele tinha programas na Rádio Globo dedicados à samba de raiz, o que já assinalava o novo direcionamento que iria tomar a carreira de Clara Nunes. A partir daí, ela passou a cantar não somente o samba, mas outros estilos e gêneros das tradições populares brasileiras, como o frevo e os cantos de trabalho. Foi nesta fase em que passou a buscar nessas tradições uma nova trajetória para sua carreira artística. Em 75, Clara lançou ‘Claridade’ já sob a tutela do violinista Hélio Delmiro. O próximo disco, ‘Canto das três raças’, foi produzido por Renato Corrêa e Paulo Cesar Pinheiro, com quem a cantora se casou e teve vasta parceria musical. Clara lançou mais 6 discos: ‘ As forças da natureza’ (1977), ‘Guerreira’(1978), ‘Esperança’ (1979), ‘Brasil Mestiço’ (1980), ‘Clara’ (1981) e ‘Nação’ (1982).
A pesquisadora Silvia Brügger explica que, apesar de ter flertado com diversos gêneros musicais, Clara fazia questão de não se ater a rótulos: “Ela ficou conhecida como uma sambista, mas afirmava que não queria ser vista nem como sambista, nem como cantora de candomblé. Ela dizia: ‘Eu sou uma cantora popular brasileira e quero cantar de tudo. De música romântica a sambas, canto de trabalhos e jongos’”, comenta.
Clara Nunes morreu em 1983, aos 39 anos, devido a uma parada cardíaca, resultado de complicações de uma operação de varizes. 

Perfil – Silvia Brügger

Com pós-doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Silvia Brügger estuda a história do Brasil, principalmente patriarcalismo, escravidão e período colonial. No pós-doutorado, dedicou-se ao estudo da história a partir da musica brasileira. “A partir de minha aproximação com os estudos da cultura popular, passei a dar atenção especial à música enquanto objeto e fonte para o conhecimento histórico. Neste sentido, desenvolvo pesquisa sobre a vida e a obra da cantora Clara Nunes, que me permite problematizar questões relativas à relação entre cultura popular e a indústria cultural, à identidade nacional, ao universo cultural afro-brasileiro, sobretudo no que concerne ao aspecto religioso e à abordagem biográfica na história. O referencial teórico-metodológico da história oral também passou a compor minhas investigações”, afirma Silvia.
A pesquisadora tem planos de realizar um projeto mais amplo, com título provisório de “As intérpretes do Brasil”, em que pretende comparar obras de cantoras que falam de um Brasil popular, como, além de Clara Nunes, Maria Bethânia e Nara Leão. Silvia Brügger é professora adjunta do curso de história da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). 

Fonte:



 

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