quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Antigos ou pós-modernos, indivíduos histéricos

Por Ana Gabriela

Psiquiatras, psicólogos e psicanalistas concordam que a histeria tem a ver com fantasias não realizadas do indivíduo, mas tem divergências sobre quais fatores da vida em sociedade alimentam a ocorrência do quadro. A repressão da libido causa a manifestação corporal de problemas psíquicos, principal característica da doença. Sabe-se que a histeria acomete o homem desde muitos séculos. Os primeiros registros remetem a antiguidade, em papiros egípcios que datam de 4 mil anos. Séculos mais tarde, a importância histórica da doença foi tanta, que o estudo dela feito por Freud deu origem à psicanálise.
Na psiquiatria, o termo histeria é anacrônico. O termo usado é transtorno dissociativo. O neuropsiquiatra Xisto Rolim, do Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) de São João del-Rei, explica que o transtorno é “um grau considerável de descontrole do consciente, das memórias e sensações, devido aos problemas que o indivíduo passa no decorrer de sua vivência. Os sintomas se manifestam em transtornos do corpo, como dor de cabeça, desmaios e convulsões”, diz. Para o médico, a sociedade opressora causa indivíduos histéricos, porque a pessoa cria fantasias em torno da realidade, às quais não pode realizar. Diante disso, passa a pôr no corpo conflitos psíquicos, sem que os sintomas físicos tenham causa aparente. O tratamento é a psicoterapia e o uso de medicamentos. ‘Na psicoterapia o profissional dá orientações e amostras da realidade ao paciente e tenta despertar uma luta interna contra os problemas pelos quais ele passou”, afirma Xisto.
De acordo com o psicólogo Lucas Teixeira, para a psicologia, a histeria é um quadro clínico que apresenta traços específicos como extravagância, vivência performática, caráter sugestionável, dissociação de papéis sociais (auto-identidade mal definida), atitude sedutora e tendência a emotividade. “O histérico é um eterno insatisfeito: exige mais do que o outro tem a oferecer, luta para obter atenção, podendo chegar ao ponto de expor a si e aos outros ao ridículo, molda seus atos com base no que entende que o outro espera dele, além de encontrar dificuldades em diferenciar a realidade concreta das suas fantasias. Em alguns casos, torna-se difícil definir se o quadro é histérico ou psicótico, sendo necessário o trabalho conjunto de psicólogos e psiquiatras”, diz.
Lucas argumenta que a sociedade e a família podem favorecer a ocorrência do quadro. Isso ocorre quando a sociedade alimenta imagens idealizadas de gênero. “As figuras que ilustram o sujeito histérico estão associadas na verdade a estereótipos de masculinidade e feminilidade: no homem, os tipos machão, o Don Juan, e o homossexual afeminado; enquanto que nas mulheres a femme fatale. A histeria de conversão refletia nos séculos XIX e XX o ideal feminino de classe média de uma pessoa frágil e espiritual, sendo esperado que a mulher de classe média se abstivesse do trabalho físico e não se interessasse pelos prazeres do corpo”, afirma Lucas.
O psicólogo explica que, com a revolução sexual e a entrada da mulher no mercado de trabalho, o ideal de feminilidade foi transformado, e o diagnóstico da histeria de conversão diminuiu nas clínicas. Entretanto, a sociedade atual ainda produz sujeitos histéricos, já que estimula tipos específicos de comportamento. “Temos fortes razões para acreditar que se encontrarmos um meio termo na questão sexual – uma vez que ontem ela era vivenciada como proibida e hoje como uma obrigação -, as figuras do Don Juan e da femme fatale perderão suas bases sócio-culturais, tornando-se residuais. De forma similar, o machão e o homossexual afeminado – enquanto faces da mesma moeda -, e porque não dizer a própria homofobia, perderiam sua razão de existir dentro de uma sociedade que permitisse e estimulasse aos homens cuidarem de sua própria saúde, expressar e lidar com seus próprios sentimentos”, explica.
Lucas Teixeira afirma que a família favorece o quadro de histeria quando, além de fomentar as questões de gênero, também manipula e seduz a criança para que ela faça o que o adulto quer, sem levar em consideração seus próprios desejos. Outro comportamento danoso é quando os pais comparam os filhos com outras crianças, como na habitual frase ‘porque você não faz ou não é como fulano’. Segundo o psicólogo, este contexto enfraquece a auto-imagem da criança, que, ao invés de aprender a reconhecer e lidar com seus próprios desejos e sentimentos, aprende a moldar-se ao que ela acha que o outro espera dela. “Vivendo neste contexto, a criança pode aprender que ‘a opinião do outro sobre mim é o que realmente conta’, mantendo-se altamente sugestionável em suas opiniões e decisões, sendo capaz de fazer o possível e o impossível para obter a atenção e aceitação deste outro”, diz. Na psicologia, o tratamento é feito pela psicoterapia, em que o terapeuta ajuda seu cliente a reconhecer, refletir sobre e modificar seu padrão de comportamento.
Para o psicanalista Hugo Valente, a histeria não é uma doença, mas sim um posicionamento subjetivo do sujeito frente ao outro. Ele explica que, para a psicanálise, a histeria surge diante de um desejo insatisfeito. De acordo com Hugo, não é necessariamente a sociedade repressora que causa o histérico. “Se existisse uma sociedade completamente libertina, também haveria este mesmo tipo de estrutura (histérica). Este tipo clínico não deriva de um tipo específico de civilização. O próprio movimento civilizatório, dos homens se organizarem e se relacionarem com o outro, já tem implicado nele a recusa e a insatisfação do sujeito. Ao relacionar-se com o outro já há certa renuncia de desejo e isto vai se manifestar nestas psicopatologias. Não é o tipo de sociedade, mas o efeito de civilização que causa a repressão, a renuncia”, explica.  Na psicanálise o tratamento se dá pela fala. “Freud percebeu que o desejo aparece na fala do sujeito. Quando a pessoa fala o que está pensando, ela permite que o analista interprete este desejo. Na interpretação do desejo, o sintoma cai”, afirma Hugo.
Doença antiga
Os egípcios já estudavam a histeria. Em registros encontrados em papiros que datam de 4 mil anos, havia a descrição de casos como o de mulheres que ficavam a dias de cama sem que houvesse uma causa aparente, que sentiam dores,  impossibilidade de abrir a boca, dentre outros sintomas, de acordo com a pesquisadora  Marilita Lúcia Calheiros de Castro, no artigo “A histeria”. A pesquisadora é especialista em Psiquiatria pela Universidade Complutense de Madri, Espanha, e mestre em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba.
No artigo, Marilita explica que na antiguidade o transtorno era identificado como uma doença que acometia mulheres que não tinham engravidado. A própria palavra histeria vem do grego histeros, que quer dizer útero. O que se imaginava é que o não uso do útero fazia-o transitar pelo organismo da mulher, prejudicando o funcionamento de outros órgãos. O remédio era a inalação de substâncias fétidas ou a fumigação, processo em que se desinfeta por meio de fumaça, da vagina, a fim de que o útero voltasse ao local certo do corpo. “O tratamento preventivo era simples: para as jovens solteiras, o casamento; para as casadas, o coito, a fim de umedecer e reter a matriz em seu lugar; para as viúvas, a gravidez”, afirma Marilita.
            Séculos mais tarde, a histeria foi amplamente estudada por Freud, o pai da psicanálise. Foi, inclusive, o estudo que este médico psiquiatra fez da doença que deu origem à psicanálise, método terapêutico ligado à interpretação do inconsciente.  Segundo a psicanalista Joviane Moura, no artigo “Introdução à Histeria”, Freud concluiu que os sintomas histéricos, que nada tem a ver com o útero, eram causados por impulsos da libido que haviam sido reprimidos. As manifestações físicas eram queixas em relação a desejos irrealizados. No artigo, Joviane sustenta a tese de que a mulher sofria com a repressão sexual na sociedade patriarcal. Segundo ela, a histeria é uma forma de fugir da realidade opressiva. A pesquisadora Marilita afirma que, mesmo atualmente, o diagnóstico do transtorno é bem mais freqüente em mulheres do que em homens.
Para psicanálise, histeria é resposta a castração
O psicanalista Hugo Valente explica que, para a psicanálise, a histeria é um tipo clínico. “Dentro da psicanálise há três possibilidades de diagnóstico: neurose, psicose e perversão. No grande grupo da estrutura neurótica, há tipos clínicos, que seriam subtipos de neurose. Um destes subtipos é a histeria”, diz.
Hugo explica que o sujeito neurótico tenta, prioritariamente, justificar a própria existência. Ele faz indagações como ‘Por que eu existo? O que o outro quer de mim? O que eu posso fazer pelo outro?’ Já a maneira de se relacionar do sujeito perverso perpassa a idéia ‘eu sei o que é bom para o outro’, enquanto na psicose a idéia central é ‘o outro quer me destruir’.
 Assim como a psiquiatria, a psicanálise considera que o principal sintoma da histeria é o direcionamento da energia psíquica para o corpo. Entretanto, Hugo Valente afirma que a psicanálise não consegue diferenciar as psicopatologias pelos sintomas. “É possível que haja sintomas de conversão (manifestações corporais de problemas psíquicos), por exemplo, em estruturas psicóticas e de perversão, não só na neurótica. O que interessa mais é o posicionamento subjetivo do indivíduo”, argumenta.
Segundo o psicanalista, desde quando nasce, o sujeito está em relação com o outro e o conflito é inerente a esta relação. O que acontece é que às vezes o sujeito tenta se livrar deste conflito por meio de psicopatologias, nomenclatura que a psicanálise dá a doenças psíquicas. “As psicopatologias são uma forma de defesa. Defesa contra o quê? De uma forma ampla, contra a sexualidade. O sujeito se defende da face da sexualidade chamada castração. O sujeito tenta dar uma resposta a castração”, afirma.
De acordo com Hugo Valente, o sujeito da psicanálise se forma a partir da falta, que Freud chamou de experiências de insatisfação. Para Freud, a experiência de insatisfação tem início na época do desmame, quando o indivíduo perde a relação de simbiose que tinha com a mãe.  “É a partir da falta do seio que o sujeito se inaugura e aparece como um ser demandante, que reclama e pede alguma coisa. Nesse movimento de pedir alguma coisa, a pessoa estabelece uma relação com o outro”, diz o psicanalista. Segundo o psicanalista, o que caracteriza toda a estrutura neurótica é a tentativa de voltar ao estado de satisfação inicial dos primeiros anos de vida. A histeria é, então, uma resposta do sujeito frente à falta, a castração.
Para a psicanálise, esta falta é inerente ao sujeito, mas as pessoas podem buscar uma forma de lidar com o sentimento de castração sem que isto passe pelas psicopatologias. Hugo completa: “O interesse da psicanálise não é a cura. A psicanálise usa o sintoma para fazer a análise do sujeito. Só que a análise chega a um ponto em que não se consegue derrubar o sintoma, que é o próprio sujeito castrado. O sujeito depara-se com uma falta e esta falta é essencial a sobrevivência do próprio sujeito. A psicanálise faz com que o indivíduo se depare com a radical alteridade, com a falta”, diz.

Fontes a serem consultadas:
Castro, Marilita Lúcia Calheiros de Castro de. Artigo “A histeria”. Retirado em http://www.psiconica.com/psimed/files/histeria.pdf
Moura, Joviane. Artigo “Introdução à Histeria”. Do link http://artigos.psicologado.com/abordagens/psicanalise/introducao-a-histeria



Nenhum comentário:

Postar um comentário